sexta-feira, junho 20, 2003

O PT e o fim da infância

O Papel e a Estrada
Depois de quase um semestre das eleições presidenciais de 2002, vemos que todo o pânico causado no mercado financeiro pela eleição de Lula era realmente infundado, como afirmava o próprio PT. A política econômica não mudou, não houve o “grande caos”, não houve moratória da dívida externa, a inflação não explodiu. De fato, até Fernando Henrique escreveu para reclamar de exageros na condução da economia que o governo DELE criou. Mas talvez não devêssemos ser tão rápidos no julgamento. Afinal, o PT está apenas vivenciando aquilo que todo partido político que já ocupou o poder conhece muito bem: um choque de realidade. Em campanha, todo candidato a presidente afirma que vai “viajar a 200 km/h nessa auto-estrada chamada Brasil”. Uma vez eleito, contudo, o candidato percebe que a estrada não é tão larga quanto parecia, que o tráfego em sentido contrário é maior do que o previsto, que o asfalto é esburacado demais e que nem todos estão dispostos a ajudar o governo a atingir a velocidade máxima. Durante a campanha, na “hora do papel”, é freqüente que os planejadores imaginem uma situação ideal, ou próxima do ideal. Mas na “hora da estrada” aparecem restrições de todos os tipos. Todos cometemos esse tipo de erro em algum ponto da vida, e ele já foi responsável pelo naufrágio de muitos sonhos dourados.

Um bom exemplo da confusão entre “papel e estrada” foi dado pelo próprio Lula várias vezes durante a campanha. Ao tentar responder como ele planejava elevar o valor do salário mínimo, ele freqüentemente comentava que “basta acabar com a corrupção e teremos dinheiro para duplicar o salário mínimo”. Muito bem, só que elevar o valor do salário mínimo é um problema concreto e muito bem definido. Já a corrupção é um problema sistêmico, governado por milhares de variáveis interdependentes e muito difícil de ser atacado. Na hora do papel, acabar com a corrupção parecia solução viável para levantar dinheiro. Na hora da estrada, é melhor adotar soluções mais práticas, como a reforma da previdência, a reforma tributária e outras.

O Piloto Sumiu!
A verdade é que o governo atual, assim como qualquer outro, tem pouco espaço de manobra em vários segmentos. Por exemplo, para tentar equilibrar o déficit público, o governo se compromete a manter um superávit primário de 4,45% do PIB, e usa as taxas de juros elevadas para tentar evitar a volta da inflação, ao mesmo tempo em que fica de olho em uma recessão iminente. Ao fazer isso, as comparações com a política fiscal do governo anterior são inevitáveis. Lula afirma que está apenas conduzindo a economia legada a um novo “espetáculo de crescimento”, mas não poderá usar essa desculpa durante muito tempo. O próprio espetáculo de crescimento parece cada vez mais remoto, especialmente depois de um primeiro semestre no qual a economia praticamente parou. Isso nos faz pensar que governo esteja apenas usando aquela receita perversa para deixar um cachorro feliz: bata, bata, bata, e volte a bater. Quando você parar de bater, o cachorro ficará feliz (*).

Outra questão que mostra as limitações de atuação do governo é a dívida externa. Quando estava na oposição, o PT se posicionava contra o pagamento da dívida, assinava manifestos e organizava plebicitos a favor da moratória. Uma vez no governo, a hipótese da moratória, sempre pronta a ser enunciada pelos radicais do PT, tornou-se impensável. Felizmente, o governo se deu conta de que precisa do apoio mundial na condução da economia, e talvez tenha se lembrado do estrago feito ao país durante o governo de José Sarney, estrago do qual ainda não nos recuperamos completamente. Assim, o futuro de Lula, que já não parece tão brilhante quanto parecia em janeiro de 2003, dependerá do que o Banco Central e o Comitê de Política Monetária puderem fazer para que o país volte a crescer. Foi assim com FHC e não poderia ser diferente com Lula, mesmo que possa parecer frustrante aos eleitores.

Parte dessa frustração decorre de um raciocínio presunçoso a respeito dos poderes da democracia. Nas democracias modernas, há claramente dois sistemas democráticos representativos em operação, e os eleitores fazem parte de apenas um deles. O primeiro deles é o sistema das urnas. A cada quatro anos, os partidos políticos se organizam, escolhem candidatos e os eleitores são convocados a votar em um deles. Ocorre que, do ponto de vista do eleitor, o processo de votação é irracional: ele deve se deslocar alguns quilômetros, passar algum tempo na fila e tomar uma decisão que, comparada à decisão de outros milhões de eleitores, é insignificante. Assim, os eleitores fazem um investimento emocional no processo eleitoral, como única maneira de dar relevância a ele. Em conseqüência, o processo eleitoral acaba não sendo tão racional quanto se pretendia.

Esse primeiro sistema representativo, o sistema eleitoral, opera em regime de “salvas”, ou seja, ele é acionado somente a cada quatro anos e os eleitores não interferem nele depois. Mas há um outro sistema representativo muito mais poderoso e eficiente, que opera em regime contínuo. Ele opera durante as eleições e depois delas, e interfere de maneira muito mais eficiente nos destinos de uma democracia. Trata-se do sistema de negociação de influências junto aos políticos e, a não ser em situações excepcionais, o cidadão comum está totalmente excluído dele. Esses negociadores, que podem ser lobistas profissionais, empresários, grupos econômicos, setores organizados da sociedade, etc, exercem pressão constante junto a ministros, senadores e deputados na tentativa de obter vantagens setoriais importantes. Em algumas situações, as atividades desse sistema de pressões servem para indicar ao governo, freqüentemente isolado, qual caminho seguir. Em outras situações, esse sistema pode causar danos a alguns setores,ou mesmo ao país, especialmente quando a pressão é feita por meio de corrupção. De qualquer forma, o eleitor comum, após depositar seu voto na urna, segue seu caminho, certo de ter tomado a decisão correta e largamente ignorante do grande jogo que é jogado pelos donos do poder.

As democracias atuais não são monarquias absolutistas, onde é fácil identificar quem está no controle. Em uma democracia ninguém está no controle, ou melhor, o sistema de pressões está no controle e isso vale tanto para o governo do PT quanto para qualquer outro. Cedo ou tarde Lula aprenderá aquilo que FHC já sabe há anos: a democracia cobra um preço muito elevado daqueles que a praticam, pois é impossível agradar a todos. Ao cidadão comum pode parecer surpreendente que o piloto tenha sumido e que ninguém esteja no comando do avião, mas, na verdade, a situação não é nova. Os chefes dos estados modernos atuam muito mais como atores, como representantes de uma dada situação, do que como verdadeiros comandantes da nação. A nação, essa entidade abstrata e quase medieval, comanda a si mesma, por mais assustador que isso possa parecer.

O Leão de La Fontaine
Após 20 anos de estrada, o PT finalmente chegou ao poder e a longa infância chegou ao fim. Contudo, o PT nunca teria conseguido acesso à Presidência da República com um discurso radical de sindicalistas raivosos, e teve que se reinventar. Em certo sentido, o PT não teve escolha: ou abrandava o discurso e tentava uma eleição séria, ou se contentava em continuar como oposição eterna. Da mesma forma que faz qualquer candidato a emprego, o PT teve que mudar e se adaptar aos tempos modernos.

Parte dessa mudança foi feita pela mera aplicação de várias camadas de maquiagem eleitoral. Em campanha, Lula chorou, apelou para a emoção (“a esperança vencerá o medo”), arquitetou a campanha “Fome Zero”, um requinte na união da de demagogia com ingenuidade logística e econômica. Passado o tempo do palanque, contudo, Lula já começa a mostrar suas limitações, afirmando que não precisa “falar inglês” para ser respeitado e que basta ter caráter, ética e um projeto concreto para que as coisas aconteçam. A maquiagem eleitoral começa a cair, como sempre cai.

Outra parte da mudança, muito mais perigosa, foi feita por meio de alianças com outros partidos. Alianças fazem parte do jogo político e são necessárias em qualquer eleição, seja no Brasil, nos EUA ou em qualquer outro lugar. Mas esse não era o estilo do PT, sempre radical e purista. De fato, muita gente apostou que o PT não seria capaz de adotar o caminho das alianças, e que acabaria perdendo novamente as eleições presidenciais. Feitas as alianças, ganha a eleição, o PT tem agora que satisfazer uma multiplicidade de interesses antagônicos, desde vice-presidentes que se colocam na posição de presidente do Copom, até radicais que se posicionam contra qualquer reforma proposta pelo governo.

Há um risco muito grande envolvido em qualquer processo de mudança. Esse risco não significa que se deva abandonar a tentativa de mudança, mas é freqüentemente ignorado por aqueles que estão apenas em busca de queijo. Jean de La Fontaine, em uma de suas fábulas, esclarece o perigo:

Um leão havia se apaixonado pela filha de um lenhador. A bela, convencida das sinceras intenções do leão, pediu-lhe que este fosse falar com o pai. Ao ouvir o leão pedindo pela mão de sua filha, o lenhador disse: “Não. Suas presas são muito grandes e afiadas”. O leão retirou-se, extraiu todas as suas presas e voltou ao lenhador, que disse: “Suas garras são muito perigosas”. O leão retirou-se, extraiu suas garras, e voltou a falar com o lenhador. Este, vendo que o leão não representava mais ameaça alguma, esmagou-lhe a cabeça.

É este o preço que o mundo cobra daqueles que perdem sua identidade durante o processo de mudança. Os próximos anos nos mostrarão se esse é o caso do PT.

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(*) Nenhum animal foi ferido durante a preparação desse artigo. O autor vive na companhia de quatro cachorros e é completamente avesso à violência contra os animais.